Numa pequena sala de Ponta Delgada, Aníbal Raposo cantou, naquele seu jeito tímido de quem está em paz com o mundo. Um destes dias, a cidade foi o pretexto das palavras e da música. A cidade dos que nela nasceram e dos que a adoptaram e agora lhe chamam sua. Verdadeiramente não escolhemos as nossas cidades: são elas que convocam os sentidos. "São as cidades que fazem os homens", escreveu Cabrera Infante. As cidades são as sereias urbanas dos novos tempos.Ficamos enfeitiçados, para além de qualquer explicação racional.
A pergunta do questionário de Proust - dentro de dias voltará a povoar as páginas dos jornais, magros de tanto Verão - "que cidade escolheria para viver?" é sempre embaraçosa e quase impossível de responder.Como escolher uma cidade? Movemo-nos pelos impulsos momentâneos: Nova Iorque, pela cidade em si. Atenas, pela memória da pedra. Lisboa, pela luz.
Ponta Delgada, na sua altivez de basalto é a minha cidade. A relação com a cidade nem sempre foi pacífica. Tal como uma relação de amor, precisou de tempo para atingir a sua maturidade.
Ponta Delgada começou por ser sinónimo de doença. As férias eram passadas no Pico ou no Continente, satisfazendo os dois lados da família.Só vinha a Ponta Delgada, de avião, por razões clínicas, em que a ida ao médico se impunha. Recordo um episódio na Clínica do Bom Jesus, em que o Dr. Furtado Lima me foi mostrar uma das salas com equipamento médico - talvez a radiografia - e me perguntou, com um natural orgulho, o que me parecia aquilo. Do fundo da memória, arranquei de imediato a comparação que me pareceu mais evidente: "Parece uma central eléctrica!", exclamei, cioso dos meus vastos conhecimentos.
O alojamento era ali na Rua Hintze Ribeiro, na Pensão Puga, já desaparecida. O dono, reverencialmente tratado por Sr. Horácio, era a abelha-mestra do estabelecimento.Desse tempo, sobrou a lembrança dumas fatias de pão que o Sr. Horácio, com método e preceito, cortava na hora do pequeno-almoço que, de tão finas, quase pareciam laminadas. Tantas vezes assisti ao ritual que passei a designar uma fatia de pão mais fina como uma "fatia à Horácio". Ainda hoje o faço, por vezes.
Depois, foi o tempo do "exílio" estudantil, para completar o 12º ano, feito de rituais de cantinas, de quartos arrendados, das lutas políticas na Associação de Estudantes do Liceu, das sessões duplas de cinema no Coliseu,das tertúlias de café e jornais na Tabacaria Açoriana - "o mais democrático parlamento do mundo" - dos tostões contados, dos almoços de Domingo em casa do Capitão Bettencourt, em que o Pico era uma referência constante.
Mais tarde, o regresso. Não exactamente "regresso", porque nunca daqui saí. Acho que já pertenço aqui. De algum modo, a cidade escolheu-me. Sem eu saber!
Não sei o que Margarida Dulmo Clark - a de Nemésio - pensaria da sua cidade. Fica o "Tema para Margarida" composto pelo Aníbal para a versão televisiva de "Mau tempo no Canal", um (pre)texto para falar da cidade. Fica bonita cidade!
TEMA PARA MARGARIDA
Ai quem me dera partir
Na canoa da esperança
E ir ancorar noutras praias
Noutros varadouros
Ai quem me dera voltar
A gozar dos tesouros
Da felicidade que eu tinha
Quando era criança
Ai quem me dera ser garça
E voar no canal
Só entre o Pico e o Faial
Me quedar dividida
Ai quem me dera mão firme
No leme da vida
Ai este amor que me mirra
Me mata e faz mal
Ai quem me dera de novo
As certezas e os medos
Ai quem me dera ter credos
E não ser indiferente
Ai o amor passa ao largo
Da vida da gente...
Ai já o tempo se escoa
Como areia entre os dedos...
Aníbal Raposo
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